sexta-feira, 25 de março de 2011

O Cisne Negro

O Cisne Negro  e a dor de uma alma reclusa

Helena Ardaiz Surreaux
Psicanalista
hsurreaux@terra.com.br


         O filme de Darren Aronofsky, estrelado pela merecidamente ganhadora do Oscar Natalie Portman, desde sua estreia, não passa despercebido, provocando intensa reação no púbico em geral.
         Uma abordagem densa, que gera inquietação e estranheza.
         Já na sessão de cinema a que assisti, houve atraso de início porque alguém havia passado mal e necessitou ser retirado da sala. Surpreendemente, durante a sessão seguinte, a situação se repetiu: nova interrupção para que uma jovem, visivelmente mareada pudesse ser removida do local.
         Tais reações frente a uma obra convidam a refletir acerca da experiência vivencial  que oferece ao público. Em que pontos da alma humana toca para causar tanto desassossego e tão difícil metabolização emocional?
         Em uma atmosfera lúgubre, a estória relata a vida da jovem bailarina Nina, que vive com a mãe, possessiva, em uma relação exclusivista, privada de amigos, vida social e com uma meta única: a performance perfeita na dança clássica.



         A condução consistente de Aronofsky aos poucos insinua as  obscuras entranhas de uma relação entre filha e mãe, afável apenas em aparência. A obsessão desta última em autoretratar-se, cobrindo uma parede inteira com desenhos roçando o sinistro, seu discurso explícito de ter abortado uma promissora carreira de bailarina por uma gravidez (de Nina), falam de egoismo e de sua consequente incapacidade de ver a filha com  sentimentos e visão de mundo próprios.
         A imagem de mãe dedicada e extremosa vai cedendo lugar à de uma mulher amarga e obstinada na realização de suas metas pessoais frustradas, apropriando-se, para isso, da vida da filha. Esta, inconscientemente, entrega-se a esse objetivo alheio, hipotecando sua existência no vão propósito de remendar os fracassos maternos, realizando-o no sonho narcisista da perfeição técnica como bailarina. 
         Tal vicissitude da relação pais-filho, surpreendemente frequente na clínica psicanalítica, produz sofrimento reconhecível na infelicidade e no alheamento daquele que o padece, com respeito as “suas” realizações.
         A pessoa que tem sua alma hipotecada em prol de outro anda pela vida como um robô, fazendo coisas que não sabe para quê, nem por quê e nas quais não obtém prazer. A bailarina do filme funcionava como um autômato programado para a conquista de uma meta determinada e esse era o sentido que animava a sua existência.  Tal sentido, não sendo construído pela personagem, na sua experiência de viver, mas implantado, como um chip maligno que a sobrecarregava com a responsabilidade de reparar as lacunas da outra, a condenava a um insuportável vazio de si mesma.
         O jogo de culpas que se travava entre as personagens de mãe e filha fica bem retratado na cena em que Nina rejeita o bolo oferecido pela mãe. A reação desta é imediatamente culpabilizadora, ameaçando jogar o doce no lixo, até que a filha, visivelmente perturbada, volta atrás e aceita comê-lo.
         As constantes auto-mutilações da jovem, como os arranhões nas costas e a extirpação das unhas podem ser lidas como decorrentes de sua escassa sensação de existir;  provocando-se dor e lesões, testava os limites do seu corpo, bem como a sua presença concreta no mundo.
         Assim como Nina, todos somos oriundos de um desejo parental que nos constitui, nos dá consistência para existir psiquicamente. Temos, portanto, que levar, pela vida afora, o caldo que somos, cuidadosamente cultivado, engendrado nas entranhas indissociáveis de pais e filho, desde o início da vida.
         Entretanto, em algum momento, para encontrar-nos adultos, temos que atravessar uma fronteira, cuja aduana exige um tributo por esse transporte, a ruptura com o desejo parental, quando este vai além de seus limites, invadindo o sujeito com uma carga que não lhe pertence.
         Este corte é vivido com dor também pelo filho, para quem decepcionar os pais vem acompanhado do temor, trazido intacto da infância, de perder o seu amor. O desamparo, mais evidente nessa fase da vida, faz da criança um ser necessitado de afeto e dedicação para protegê-la do mundo, vivido como assustador e de proporções intangíveis. Não hesita em sacrificar o que estiver ao seu alcance com o propósito de manter os pais motivados na tarefa de tornar-lhe suportáveis as tensões do mundo, permitindo-lhe metabolizar a experiência de viver.



         Esse modelo, impresso pelo desamparo, tem tal força, que teima em estender-se, muitas vezes anacronicamente, bem além da infância, quando os progenitores já não são vitais para a sobrevivência. Todos os pais, inconscientemente, e em alguma medida, valem-se desse poder para o gozo narcisista de ver os filhos transitando por valores e importâncias comuns às suas. Até certo ponto isso é natural e  desejável. Certo ponto.
         Quando a influência dos pais passa a ser invasão? Quando denota a paralisação de aspectos importantes da vida do sujeito, situação que vem acompanhada de angústia, sensação de estranheza, confusão, insatisfação permanente nos investimentos, infelicidade, impossibilidade de desfrutar do que faz. Uma espécie de obstáculização em seu movimento existencial, devido à intromissão tirânica do desejo parental, geralmente movida por conflitos pendentes do passado dos pais, que se transmitem, num movimento inconsciente, para a geração seguinte.
         Nina se vê frente ao desafio mais importante de sua vida no fato de ser escolhida pelo poderoso e sedutor Thomas Leroy, coreógrafo da companhia de balé, para desempenhar um rol protagonista, cobiçado por todas as bailarinas. Trata-se do papel de Odete, doce e obediente rainha dos cisnes, em nova versão do clássico “O Lago dos Cisnes” de Tchaikowsky. Entretanto, o papel exige também a representação do  duplo de Odete, Odile, a feiticeira, que aparece sob a forma de um cisne negro, que simboliza a paixão, a sexualidade e a maldade, aspectos que a personagem não consegue retratar, dada sua limitação afetiva, reparada na busca obssessiva de uma perfeição técnica.
         Acredito que o malestar que provoca o drama da bailarina vai muito além de um confronto da personagem com uma parte obscura de si mesma, o que é exigido dela é muito mais difícil, que se encontre com  algo que não tinha: a paixão.
Este estado é exclusivo das almas livres, que já transitaram pelas areias escaldantes do desejo e conseguiram construir uma existência que repousa numa identidade singular, formada da síntese do  sonho que as constituiu e da ruptura com ele.
 Esse me parece o aspecto mais nauseante e desesperador para o público: ao buscar a paixão dentro de si mesma, Nina só encontra o vazio. E o vazio é o supremo horror. Nada mais terrível do que ser confrontado com o vazio de sua existência.
Aí se precipita o processo de enlouquecimento explícito da personagem. A busca do “cisne negro”, em vez de anunciar o enriquecimento de sua personalidade por multifacetar-se com o surgimento de novos aspectos, traz a morte, já que não havia um estofo de representação de si mesma que sustentasse a descoberta. Em estruturas psíquicas  frágeis como a de Nina, escavações profundas são vividas como violência e provocam o desmoronamento do frágil edifício que abriga a sua alma.
Ao invés da insuportável pressão que sofreu por parte de seu diretor artístico, a personagem necessitaria de uma intervenção que visasse, antes de tudo, dar  consistência psíquica a sua humanidade, encontrando o seu contorno singular. Essa é a condição para a construção da sexualidade, da paixão e da fruição estética da vida. Primeiro, é necessário existir!
No filme, entre  alucinações e delírios, Nina por fim consegue desempenhar o cisne negro com a intensidade que se esperava dela. Mas, de onde tira material para essa performance?
Retomemos: para realizar o projeto traçado pela mãe, tinha que realizar o sonho da bailarina perfeita, por isso o cisne branco, representação da fantasia e do desejo materno, fluía perfeitamente em sua dança. No entanto, para chegar ao seu destino, tinha que se encontrar com o cisne negro, tudo o que lhe havia sido negado e proibido na relação amalgamada com a mãe, que consumia a sua vida. O “cisne negro” pressupõe ser tocada pela mágica de um homem (pai) que a transforme em “princesinha” (como passou a chamá-la Leroy) e descubra a sua feminilidade ardente e apaixonada. E o paradoxo se equaciona da seguinte forma: para cumprir com o projeto de sua existência, chegando à performance perfeita, teria que desobedecer e descobrir em si um “cisne negro”.
Penso que o material de onde tira seu “cisne negro” é do único desejo genuíno nela: o de existir. Esse é o seu profundo clamor pelo que a vida lhe negou. E o cisne vem e se apodera dela, realizando a tragédia já anunciada na condição asfixiante de sua humanidade.

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Gostaria de colocar algo, que para mim é significativo, que foi o fato de Nina só ter conseguido "viver" o Cisne Negro, em sua última cena, sentindo dor e que ela própria não estava consciente disso. As auto-mutilações, como bem colocado pela psicanalista, era o modo como ela conseguia existir, ou seja, sentindo o seu corpo; sentindo algo que fosse apenas dela, além do vazio. Em última instância, "sentiu-se VIVA". Arrisco dizer que foi o primerio (e último) momento de sua existência em que ela sentiu-se inteira e ela mesma. E não, uma extensão da mãe.


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