domingo, 17 de março de 2013

Saber Cuidar

Ethos: (sentido originário grego) significa a toca do animal ou casa humana; aquela porção do mundo que reservamos para organizar, cuidar e fazer o nosso habitat.


De que ethos precisamos? Daquele que se opõe à falta de cuidado, ao descuido, ao descaso e ao abandono?

O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.

* A importância essencial do cuidado para Martin Heidegger (1889-1976) em seu famoso Ser e Tempo: "Do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato".

Significa reconhecer  o cuidado como um modo-de-ser essencial, sempre presente e irredutível à outra realidade anterior. É uma dimensão fontal [relativo a fonte], originária, ontológica, impossível de ser totalmente desvirtuada.

Um modo-de-ser não é um novo ser. É a maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer. O cuidado entra na constituição do ser humano. Sem o cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado, desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo e destruir o que estiver à sua volta.

Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana (que responde à pergunta: o que é ser humano?). O cuidado há de estar presente em tudo. Nas palavras de Martin Heidegger: "cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico". Traduzindo: um fenômeno que é a base possibilitadora da existência humana enquanto humana. p.34

* Homem = húmus = terra fértil.

O autor fala dos mitos e conta a fábula-mito do cuidado - fábula de Higino.

(...) Os mitos não têm autor. Pertencem à sabedoria comum da humanidade, conservada pelo inconsciente coletivo sob a forma de grandes símbolos, de arquétipos e de figuras exemplares. Ilumina caminhos e inspira práticas.

A fim de explorar a significação do mito... falando de Júpiter (masculino), Terra (feminino) e Saturno...


(...) a linguagem consagrada da Psicologia científica vigente representa, em boa parte, um insulto à alma porque, na elaboração de seus instrumentos de análise, deixa de fora as energias poderosas, verdadeiros deuses e deusas que habitam a profundidade humana, as imagens e os símbolos. Preferem os conceitos abstratos, extraídos de um paradigma que privilegia a física e a mecânica. Devemos, pois, saber combinar inteligência instrumental-analítica, donde nos vem o rigor científico, com inteligência emocional-cordial, donde derivam as imagens e os mitos. p.37

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No paleolítico (2,7 milhões a 10 mil anos A.C - Idade da Pedra Lascada - muito frio, viviam em cavernas, culto à mulher pelo poder de dar a vida) esta percepção de que somos Terra constitui experiência-matriz da humanidade. Ela produziu uma espiritualidade (de uma profunda união cósmica e de uma conexão orgânica com todos os elementos como expressões do Todo) e uma política (as instituições matriarcais - as mulheres formavam os eixos organizadores da sociedade - sociedades sacrais, perpassadas de reverência, de enternecimento e de proteção à vida). Até hoje carregamos a memória desta experiência da Terra-Mãe, na forma de arquétipos e de uma insaciável nostalgia por integração, inscrita nos nossos próprios genes). p.77



A partir do neolítico (temperatura mais amena, início da agricultura, domesticação animal e da natureza, em geral, primeiras organizações sociais e instituições políticas, primeiras escritas - que deram início às primeiras civilizações) começaram a predominar os valores do masculino, fundando uma nova política. Os homens assumiram a hegemonia (supremacia) da sociedade. Instauraram o patriarcado com o submetimento da mulher e a dominação sobre a natureza. A perda da re-ligação de tudo com tudo é fruto da cultura patriarcal que não integrou as contribuições anteriores do matriarcado. Ela subjaz nas nossas principais instituições políticas e religiosas atuais. E mostra seus limites perigosos no descuido com o planeta Terra, na falta de cuidado com a vida em todas as suas formas e no incremento dos conflitos nas relações sociais.

A dimensão Saturno - no reino de Saturno deuses e homens/mulheres conviviam em suprema integração, paz, justiça benquerença. É uma utopia. Mas só utopia?


Uma sociedade não pode viver sem utopia, não pode deixar de projetar seus sonho nem desistir de buscá-los dia após dia. Ou imperariam os interesses menores, se chafurdariam no pântano de uma história sem esperança. p.81

Mas a utopia não pode ser utopista - aí, se torna fuga irresponsável ou pura fantasia. A utopia precisa de tempo, de processo (histórico) para dar corpo ao sonho; passo a passo os mil passos; espera, superação de obstáculos e trabalho de construção.  O ser humano vive distendido entre a utopia e a história. Ele está no tempo onde as duas se encontram. p.82

Como tornar possível essa síntese entre céu-terra/utopia-história? Como mantê-la viva, fecunda e sempre atraente? É aqui que invocamos o cuidado. O cuidado é o caminho histórico-utópico da síntese possível à nossa finitude. Por isso é o ethos fundamental, a chave decifradora do humano e de suas virtualidades.

Extraído de "Saber Cuidar" - Boff, Leonardo

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